A PARTE PODRE SOBRE O IMPÉRIO "ARABI DO ETANOL"


No Dia do Agricultor, as entidades vêm a público denunciar a situação lamentável à que se chegou em Naviraí um mês após a fiscalização do canavial da empresa Canavieira Infinity, no qual foram flagradas condições degradantes de trabalho levando à decisão de suspender as atividades.

Enquanto o Judiciário multiplica sentenças contraditórias, o problema encontrado pouco se resolve e as vítimas, indígenas e migrantes, ficam a mercê do bel prazer do empregador.

É um verdadeiro escândalo a novela encenada desde o início de julho com a sucessão de decisões judiciárias contraditórias, questionando a fiscalização empreendida pelo Grupo Móvel do Ministério do Trabalho nos canaviais do grupo Infinity em Naviraí (MS) e inviabilizando o resgate de 827 cortadores ali encontrados em situação análoga à de escravo.

Estão em confronto os interesses imediatos da empresa e a dignidade fundamental dos trabalhadores. Está em jogo a competência do poder público em fazer valer a lei.

Veja o episódio:

No último dia 28 de junho, uma equipe do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho coordenada pela auditora Camilla de Vilhena Bermegui e integrada por oito auditores, o Procurador do Trabalho Jonas Ratier Moreno e quatro agentes da Polícia Federal, interditou todas as frentes do corte de cana da empresa no local, por constatarem a infração de mais de 20 itens das normas trabalhistas. Com base no relatório onde concluem sobre as “condições degradantes a que estão submetidos os trabalhadores de corte manual de cana-de-açúcar, uma vez que nem o patamar mínimo de direitos relativos ao conforto e segurança no local de trabalho está respeitado”, os auditores, como é de praxe nestes casos, determinaram a interdição das frentes de trabalho e a rescisão indireta dos contratos. Após uma primeira liminar anulando a fiscalização e seus efeitos imediatos (interdição das frentes e resgate dos trabalhadores), concedida dia 5 de julho em Brasília na 20ª Vara do Trabalho da 10ª Região, em sede de mandado de segurança, por Marli Lopes da Costa de Góes Nogueira, uma juíza trabalhista distante dos fatos, veio, no dia 13, uma decisão contrária do Tribunal Regional do Trabalho da mesma 10ª Região (suspensão de segurança), que restaurou a fiscalização e cassou a liminar: o desembargador presidente do TRT, Ricardo Alencar Machado, argumentou que “o esforço no combate ao regime de trabalho análogo ao de escravo deve reunir todos os segmentos da sociedade organizada e o valor a ser considerado, sem nenhuma dúvida, é o da preservação do trabalhador”, não vislumbrando “qualquer ilegalidade nas condutas dos órgãos fiscalizadores, visto que pautadas no ordenamento legal e na preservação da dignidade da pessoa humana”. Na sequência, dia 21 de julho, atuando em função corregedora, o presidente do Tribunal Superior do Trabalho, João Oreste Dalazen, reformou a decisão do TRT e restaurou aquela de primeiro grau, desautorizando os fiscais, negando sua competência para interditar atividades em estabelecimento sob inspeção e invocando a prioridade a ser acordada à garantia da recuperação financeira da empresa. Uma interferência questionada pela Associação dos Magistrados do Trabalho (AMATRA-10). No mesmo dia, três decisões da Justiça do Trabalho do Mato Grosso do Sul (6ª Vara) tornaram sem efeito as decisões dos fiscais (rescisão dos contratos, pagamento das verbas indenizatórias, interdição das frentes de trabalho e das caldeiras, mesmo com os riscos iminentes apresentados) sob o argumento de que isso prejudicaria a sobrevivência da empresa. Ainda questionaram a autoridade dos fiscais para tomar tais medidas.

Resultado: a fiscalização continua suspensa e os trabalhadores, submetidos a condições degradantes impostas no canavial, sem acessarem aos direitos assegurados em lei. São 542 migrantes, vindos de Minas Gerais e do Nordeste, e 285 indígenas, dos povos Guarani-Kaiowa, Guarani-Nhandeva e Terena. Segundo o Conselho Indigenista Missionário (CIMI-MS), “são recorrentes no Estado os casos de trabalhadores em situação análoga à escravidão. Mais de 10 mil indígenas cumprem jornadas extensas nos canaviais. Os índios entram nessa situação porque não estão em suas terras originárias: por falta de opção, se submetem a condições degradantes nas usinas”. O Grupo Infinity não é novato no quesito trabalho escravo: além da libertação em 2008 de 64 canavieiros, em Conceição da Barra (ES), que resultou na sua inclusão (temporária) na Lista Suja do Governo Federal, já aconteceram outras duas libertações em canaviais do mesmo grupo: 25 libertados em 2008 em Pedro Canário (ES), e 288 libertados em 2009 em São Mateus (ES), na Usina Cridasa, em operação conduzida pela força-tarefa do Ministério Público do Trabalho. Na Ação Civil Coletiva que impetraram dia 25 de julho, no intuito de rescindir os contratos trabalhistas, os procuradores do trabalho de Mato Grosso do Sul citam os próprios trabalhadores: reunidos dia 22 em assembléia (na qual ameaçaram ocupar a Usina Naviraí, onde a cana é transformada em álcool), confirmaram a situação relatada pelos fiscais, descrevendo assim o tratamento degradante a que são submetidos: faltam equipamentos de proteção, os existentes estão gastos e rasgados; são obrigados a trabalhar mesmo com chuva, sem nenhuma proteção contra o mau tempo; os fiscais os ameaçam; são obrigados a recolher a cana logo após a queima da palha, com ela ainda quente; o ônibus que os transporta anda com parafusos a menos nas rodas e está em péssimas condições; no alojamento com vagas para 20 dormem 40 trabalhadores; o telhado quebrado deste alojamento permite goteiras; há apenas 12 fossas — todas com mau cheiro — para mais de 400 homens. Falaram ainda da péssima alimentação recebida, denunciando que no jantar comem as sobras do que foi servido no almoço. Segundo o Ministério Público, isso “importa em justo motivo para a decretação da rescisão indireta dos contratos de trabalho”, uma vez que os trabalhadores “foram submetidos a labor em condições degradantes, em flagrante violação às normas na área de Medicina e Segurança do Trabalho”. O Juiz atendeu uma parte da demanda ao obrigar a empresa a assegurar o pagamento de alimentação e hospedagem aos trabalhadores da empresa Infinity Agrícola S/A e da Usina Naviraí S/A Açúcar e Álcool, enquanto o conflito sobre o resgate dos trabalhadores encontrados em situação degradante é decidido judicialmente. Em audiência subseqüente de conciliação realizada dia 27 de julho, a empresa, sob a pressão de uma possível ocupação da usina, concordou em rescindir os contratos dos trabalhadores que não quisessem permanecer[vi]. A escravidão é uma prática abominável que a Igreja no Brasil vem denunciando desde a década de 1970 pela voz de alguns Bispos e, de modo sistemático e documentado, pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). O Estado brasileiro reconheceu a gravidade da situação quando, em 1995, criou o Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho - para fiscalizar e combater essa prática criminosa – e, em 2003, a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo - CONATRAE, órgão colegiado vinculado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, com a função primordial de monitorar a execução do Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo. De 2003 até hoje foram identificados dois mil casos no país e resgatados mais de 36 mil trabalhadores, entre os quais 10.010 canavieiros (66 casos). Neste período, a Comissão Pastoral da Terra já registrou denúncias envolvendo mais de 56 mil trabalhadores "aprisionados por promessas", obrigados a trabalhar em fazendas, carvoarias e canaviais, tratados pior que animais e impedidos de romper a relação com o empregador. Ao definir o que é trabalho análogo ao de escravo – uma violação flagrante da dignidade e/ou da liberdade do trabalhador, a lei brasileira não deixou dúvida (cf art. 149 CPB); também não deixa dúvida quanto à competência exercida pelos auditores fiscais do trabalho que, juntos com procuradores do trabalho e policiais federais, compõem as equipes de fiscalização especializadas, cuja qualidade mereceu repetidos elogios dentro e fora do Brasil (ainda recentemente pela OIT e pela ONU). Segundo a CNBB, o uso da propriedade como instrumento para escravizar o próximo é crime absolutamente intolerável contra a dignidade e contra a vida. É crime igualmente intolerável a busca desenfreada da rentabilidade financeira do capital, em detrimento do mínimo respeito à dignidade do trabalhador.

Que justiça é essa que desconstitui de sua competência legal os fiscais da lei e privilegia os interesses do infrator? Que sociedade é esta que tolera situações tão abertamente desumanas? Que agronegócio é este para quem tudo é permitido? Diante do exposto, exigimos que a Justiça volte a cumprir seu papel na erradicação do trabalho escravo e na promoção da dignidade dos trabalhadores. 28 de Julho, dia do Agricultor.

Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz - CNBB CPT Nacional - Comissão Pastoral da Terra, Campanha contra o Trabalho EscravoCIMI - Conselho Indigenista Missionário, Regional Mato Grosso do Sul.

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